terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Capítulo 5 - Comprimidos e Paella


Na última sessão de terapia, o Dr. Marcondes me receitou alguns comprimidos. Diz ele que me fariam dormir melhor e também regulariam meu humor. Confesso que ainda estou tentando acreditar que pastilhas brancas e redondas possam me fazer ser mais feliz e esperançosa. Mas uma coisa já deu para perceber: meu estômago sente estas pastilhas como ninguém. Eu, que sempre fui boa de garfo, me vejo enjoada e com dores nunca antes experimentadas.
Mesmo com o estômago sofrendo com os novos remédios, acordei com um vontade inexplicável de comer paella. Catei o livro de receitas da minha avó. Minha herança. Parece algo sem valor para uma herança, mas confesso que ele me faz sorrir mais que os filmes dos irmãos Marx. Enquanto as jóias, as porcelanas e os vestidos exclusivos de vovó iam parar nas mãos das tias e das amigas, eu fiquei com um livro de receitas amarelados. Segundo minha mãe, minha avó acreditiva que, pelo menos cozinhando eu fosse uma boa pessoa. Voilá! Vamos às panelas!
Depois de um bom tempo cercada de um vapor quente e cheiroso, lá estava eu diante de uma paella irresistível. Fiz uma receita que dava para duas pessoas, pois minha fome era a de um casal de gordinhos diante de uma padaria. Quando dou uma profunda respirada para saborear o aroma da minha obra-prima, a campanhia interrompe o momento de prazer. Quem seria o chato interessado em me incomodar em pleno meio-dia? Talvez por culpa dos comprimidos ou pelo afago da comida boa, ensaiei um sorriso simpático ( não foi nada fácil) e fui até a porta.

O par de olhos verdes conseguiu me fazer esquecer a paella por alguns momentos.

- Desculpe, você vai achar que sou meio doido, mas eu não pude deixar de perceber o cheiro da paella que vem da sua cozinha. Você já foi a espanha?
-Bem, eu já fui, mas a trabalho.
-Tem descendência? Meu mãe nasceu em Barcelona.
-Ah, é? Não, a minha família é de origem portuguesa.
-Bom,...desculpe a indiscrição, mas será que você poderia me passar a receita?
-Ah...bom...eu...claro, claro! Entre, por favor.
-Com licença.

Eu, a chata mor do prédio, a garota sem amigas da escola, a menina que escondia seus doces para não ter que conversar na hora do recreio, estava trocando dicas culinárias com o vizinho recém-chegado. Achei que estava louca. Peguei o livro de receitas. Num impulso, arranquei a página. Nunca mais faria outra paella. Chega de pessoas tão próximas. Logo ele iria perceber o quanto sou insuportável e que a única coisa que sei fazer é cozinhar. Entreguei a folha tentando não tremer as mãos.
-Aqui está.
-Nossa! Não precisava arrancar a folha. Eu copiaria com prazer a receita. Estagrou seu caderno.
-Sem problemas. Eu já sei essa receita de cor. Uso o caderno apenas por...força do hábito.
-Bom, então está bem. Muito obrigada. E desculpe ter sido um pouco incoveniente.
-Não há problemas.

A sensação de que estava ficando louca havia passado. Foi um bom teste para a eficácia de meus comprimidos e também uma forma de ir, aos poucos, me tornando mais sociável. Meu terapeuta ficará orgulhoso, pensei. Até que a boca falou como se não fosse comandada pelo cérebro.

-O senhor não gostaria de me acompanhar? Eu fiz uma receita para duas pessoas?
Obtive um sorriso como resposta.

Sim, eu estava louca.

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