sábado, 25 de fevereiro de 2012

Capítulo 6 - Travesseiro maldito


Não gosto de mudanças. Tenho medo que elas me atrapalhem. Mudar os móveis de lugar é algo estranho para mim, mas o Dr. Marcondes disse que seria bom eu dar novos ares para me adaptar melhor as mudanças que vão acontecer daqui em diante. Que mudanças são essas, ainda não sei responder.
Resolvi mudar de travesseiro. Comprei um indicado pela vendedora, tem a mesma tecnologia usada na Nasa. Em outros tempos, eu teria dado um risinho sarcástico e feito piadas bem pesadas sobre a mentira dela. Mas com uma força (bem pouca, o que me surpreendeu bastante), acabei sendo simpática e comprando o tal acessório espacial. Ser simpática ainda me traz certo desconforto. A vida inteira achei que as pessoas eram simpáticas comigo apenas por educação e que isso era falsidade e como odeio falsidade eu tinha mais era que ser grosseira e mostrar a realidade. Dr. Marcondes diz que isso é estratégia de defesa e que eu ia me sentir bem melhor seguindo meu instinto e acreditando mais na felicidade gratuita das pessoas. Vamos ver no que isso vai dar.
Minha primeira noite com a cabecinha repousada no travesseiro novo foi péssima. O utensílio de astronauta era um conforto só, mas minha cabeça não cosneguiu descansar um só segundo por causa de um sonho. Ou mais de um, não sei. Era uma confusão tão grandes de acontecimentos na minha cabeça que eu não sabia onde começava um e onde acabava outro. Vi meu pai, minha mãe, aos berros, como sempre. Ele nervoso e com olhos raivosos, ela apontando os dedos grandes na cara dele. Lembro das largas mechas de cabelo branco dela. Dizia que não tinha tempo pra pintar e eu, ainda criança, perguntava para as minhas bonecas porque ela não levantava dos sonos sem fim das tardes de sábado e ia até o salão. De repente, tudo ficou borrado e eu só ouvia vozez dizendo palavras soltas: animal, traste, desnaturada, burra. Comecei a sentir falta de ar, sede e também um tontura e simplesmente não conseguia me mexer. Depois entrei numa casa velha, suja e lotada de roupas. Era tudo espalhado, sem organização. Duas senhoras com olhos macabros pediam que eu usasse as roupas, se ajoelhavam aos meus pés, choravam. Eu chorava. Comecei a sentir frio e me vi com uma criança no colo, chorando desesperadamente. A pequena não devia ter mais que 5 anos e dizia que tinah fome. Eu corria por uma rua vazia, nenhuma loja aberta. E a criança gritava mais e mais.
Então acordei. Pensei em tomar mais um comprimido. Mas lembrei que a receita não permitia mais que um por dia. Senti meu corpo pesado, parecia que tinha tomado uma surra. Respirei fundo e tentei voltar a dormir sem sucesso. Levantei, tomei um banho e fui preparam um cafÉ. Logo o sol ia nascer e, depois do meio-dia, eu iria para a terapia. Nunca esperei tanto por adentrar naquele consultório.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Capítulo 5 - Comprimidos e Paella


Na última sessão de terapia, o Dr. Marcondes me receitou alguns comprimidos. Diz ele que me fariam dormir melhor e também regulariam meu humor. Confesso que ainda estou tentando acreditar que pastilhas brancas e redondas possam me fazer ser mais feliz e esperançosa. Mas uma coisa já deu para perceber: meu estômago sente estas pastilhas como ninguém. Eu, que sempre fui boa de garfo, me vejo enjoada e com dores nunca antes experimentadas.
Mesmo com o estômago sofrendo com os novos remédios, acordei com um vontade inexplicável de comer paella. Catei o livro de receitas da minha avó. Minha herança. Parece algo sem valor para uma herança, mas confesso que ele me faz sorrir mais que os filmes dos irmãos Marx. Enquanto as jóias, as porcelanas e os vestidos exclusivos de vovó iam parar nas mãos das tias e das amigas, eu fiquei com um livro de receitas amarelados. Segundo minha mãe, minha avó acreditiva que, pelo menos cozinhando eu fosse uma boa pessoa. Voilá! Vamos às panelas!
Depois de um bom tempo cercada de um vapor quente e cheiroso, lá estava eu diante de uma paella irresistível. Fiz uma receita que dava para duas pessoas, pois minha fome era a de um casal de gordinhos diante de uma padaria. Quando dou uma profunda respirada para saborear o aroma da minha obra-prima, a campanhia interrompe o momento de prazer. Quem seria o chato interessado em me incomodar em pleno meio-dia? Talvez por culpa dos comprimidos ou pelo afago da comida boa, ensaiei um sorriso simpático ( não foi nada fácil) e fui até a porta.

O par de olhos verdes conseguiu me fazer esquecer a paella por alguns momentos.

- Desculpe, você vai achar que sou meio doido, mas eu não pude deixar de perceber o cheiro da paella que vem da sua cozinha. Você já foi a espanha?
-Bem, eu já fui, mas a trabalho.
-Tem descendência? Meu mãe nasceu em Barcelona.
-Ah, é? Não, a minha família é de origem portuguesa.
-Bom,...desculpe a indiscrição, mas será que você poderia me passar a receita?
-Ah...bom...eu...claro, claro! Entre, por favor.
-Com licença.

Eu, a chata mor do prédio, a garota sem amigas da escola, a menina que escondia seus doces para não ter que conversar na hora do recreio, estava trocando dicas culinárias com o vizinho recém-chegado. Achei que estava louca. Peguei o livro de receitas. Num impulso, arranquei a página. Nunca mais faria outra paella. Chega de pessoas tão próximas. Logo ele iria perceber o quanto sou insuportável e que a única coisa que sei fazer é cozinhar. Entreguei a folha tentando não tremer as mãos.
-Aqui está.
-Nossa! Não precisava arrancar a folha. Eu copiaria com prazer a receita. Estagrou seu caderno.
-Sem problemas. Eu já sei essa receita de cor. Uso o caderno apenas por...força do hábito.
-Bom, então está bem. Muito obrigada. E desculpe ter sido um pouco incoveniente.
-Não há problemas.

A sensação de que estava ficando louca havia passado. Foi um bom teste para a eficácia de meus comprimidos e também uma forma de ir, aos poucos, me tornando mais sociável. Meu terapeuta ficará orgulhoso, pensei. Até que a boca falou como se não fosse comandada pelo cérebro.

-O senhor não gostaria de me acompanhar? Eu fiz uma receita para duas pessoas?
Obtive um sorriso como resposta.

Sim, eu estava louca.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Capítulo 4 - Bom dia


-Bom dia!
Aquilo me soou como um susto, desses quea gente toma no meio da noite quando enxerga um mostro de sete cabeças onde na verdade se encontra a sombra da cadeira velha da sala. Raramente recebo cumprimentos. Meus vizinhos disfarçam quando eu passo, falam ao telefone com ele desligado, fingem ler o folheto que ganharam na rua. Outros simplesmente não me enxergam. Por isso, ver um sorridente homem grisalho entrar no elevador e me dar "bom dia" foi quase como dar de cara com o galã de cinema preferido lhe sorrindo de um jeito maroto. Quem ele era, eu não sabia. Ainda. Dei o meu jeito de descobrir sua identidade. Fiquei cuidando do corredor e quando Dona Josefa, a maior fofoqueira do prédio entrou, fui atrás. Ela, como os outros, não vai com a minha cara, mas sua língua não se contém nem estando perto de desafetos. Ela precisa contar uma fofoca, seja para o mendigo da esquina ou para o presidente da República. Tem horas que eu penso que ela tem um espião em cada apartamento, tal a riqueza de detalhes de seus comentários. Suspirei como quem não quer nada. Quando ensaiei um bocejo para chamar a atenção, a velha coroca começou a colocar em prática o que melhor sabe fazer.
- O vizinho novo já terminou de trazer a mudança. Roberto Velasquez, se separou recentemente. Até que pra quem já passou dos 50 ele está bem conservado. Espero que não pinte o cabelo, pois homem que se separa e quer arrumar mulher nova sempre comete esta gafe de tingir os fios de preto e fazer aquela combinação tenebrosa com pés de galinha. Se bem que ele usa óculos de sol quando está na sacada, quase sempre lendo livros bem grossos. Pés de galinha não devem ter naqueles olhos. Aliás, eles são verdes.
Térreo. A língua de trapo sai para ir ao mercado e eu refaço minha viagem até o oitavo andar. Durante todo o tempo da "viagem" não penso em outra coisa a não ser que começaram a me dar bom dia sem que eu precisasse forçar simpatia. Também pensei bastante nos olhos verdes do vizinho, lendo livros longos atrás de óculos escuros.